Foto:Rafael Cavalcante
Iarley não planeja deixar o futebol tão cedo. Feliz ainda como atleta, ele reconta sua vida de homem e jogador nas páginas do O POVO
Torcedor do Ceará desde a infância, Iarley sempre sonhou em jogar no time do coração. Conseguiu isso após nove anos de jogador profissional, após idas e vindas no futebol. Hoje, aos 37 anos, e de volta ao Vovô, ainda não pensa em parar de jogar tão cedo. Não sabe se terminará a carreira em Porangabuçu, mas não descarta a possibilidade.
Até chegar à fama que tem atualmente, começou nos campinhos de areia de sua cidade, Quixeramobim, e foi parar nos gramados de La Bombonera e dos grandes clubes do Brasil. Sem contar, a realização daquele seu sonho de menino: vestir a camisa alvinegra.
Hoje, de volta ao Ceará, Iarley contabiliza sucessos, histórias de vida e a serenidade de quem passou por todo tipo de pendenga antes de vencer na vida. Nas Páginas Azuis desta semana, o atacante-ídolo da torcida do Vovô descortina sua vida e relembra grandes momentos da carreira, como os títulos mundiais. O que faz dele o jogador cearense mais vencedor.
O POVO - Como a sua história no futebol começou?
Iarley - Desde o colégio. Eu levava a bola dentro da mochila e depois da aula, antes de ir para a casa, eu só tirava a camisa e brincava ali mesmo. Tinha um campinho perto do colégio. Era uma coisa que fazia parte da minha rotina. Toda a minha infância foi estudando e jogando bola. Eu só fazia isso.
OP - Em algum momento, o futebol atrapalhou os estudos?
Iarley - Naquela época, a média escolar era cinco. E eu tirava a média para não ficar em recuperação. Existia uma cobrança muito grande dos meus pais. Eu acho que o futebol teria atrapalhado se eu não tivesse me tornado profissional. Mas eu investi muito no futebol e terminei o segundo grau. Porque, se acaso não conseguisse viver do futebol, eu teria que fazer faculdade.
OP - Que faculdade você teria feito?
Iarley - Eu era um atleta. Fazia de tudo no colégio. Eu ganhava os 100 metros rasos, participava de vôlei, futebol de salão, de campo, caratê. Era uma atleta nato. Então, eu faria educação física. Não tinha para onde correr.
OP - Você nasceu em Quixeramobim. Como foi o início da sua carreira como jogador morando no Interior?
Iarley - Foi complicado, mas foi tranquilo. Eu já conhecia Fortaleza, passava minhas férias aqui. Tenho muitos familiares que me deram apoio. Antes de ir para o Ferroviário, eu estive um tempo morando no Ceará (Sporting Club). Mas porque eu era uma pessoa que respirava, almoçava, jantava, sonhava futebol. Eu não queria ir para a casa dos meus familiares e pensar que tinha que pegar ônibus para vir jogar e perder o foco. Era muito determinado.
OP - Como você conseguiu passar esse período morando na sede do Ceará?
Iarley - Foi tudo muito rápido. Ainda faltavam alguns meses para eu terminar os estudos e eu estava de férias aqui na metade de 1991. Voltei para Quixeramobim para os meus pais assinarem a autorização para eu jogar. Fui até empolgado achando que iria terminar os estudos em Fortaleza, mas minha mãe não deixou. Ela queria que eu terminasse os estudos em Quixeramobim. E eu não voltei para o Ceará. Foi até com o Lula Pereira (ex-jogador e técnico do Ceará) que assinei a minha ficha. Tenho até hoje. É uma relíquia. Quando vim passar férias na casa dos meus familiares, o meu tio era gerente da antiga Reffsa (extinta Rede Ferroviário Federal S.A), onde a maioria era torcedor do Ferroviário. Ele, imediatamente, ligou para o Chicão (diretor de futebol do Ferroviário). Ele veio correndo com uma ficha. Assinei. No outro dia, já estava treinando.
OP - E como foi o seu período lá na Barra?
Iarley - Eu passei um ano morando nas instalações do Ferroviário, com todas as dificuldades que a gente sabe que tem. Mas a formação foi boa com o professor Edmundo (Silveira, atualmente técnico das categorias de base do Ceará), com o Coca-Cola (ex-jogador coral). E isso me ajudou a conhecer a parte tática do jogo. Era um jogador muito rápido, mas tinha que aprender a me posicionar.
OP - Foi com o Ferroviário que você veio morar definitivamente em Fortaleza?
Iarley - Foi sim. Ai, eu já vim em definitivo. O Ferroviário, naquela época, tinha o famoso time aspirante. Eu fui campeão e ingressei no profissional em 1994. Só que eu não tive muita chance porque o time era muito forte (a equipe foi campeã cearense). Tinha Batistinha, Cícero Ramalho, Acácio. Eu era um garoto novo e tinha que esperar minha vez. Só que eu era muito impossível. Eu não me conformava. Cheguei para falar com o presidente (Clóvis Dias) e soube que o Dr. Walmir (Araújo, atual presidente do Quixadá) estava por lá e que ia assumir o Quixadá. Falei com ele: “Walmir, me leva com o senhor. Quero jogar e acho que eu estou preparado. Não posso ficar aqui no banco”. Fui a revelação do Cearense e um grupo de empresários comprou meu passe.
OP - E esse período no Quixadá, foi de aprendizado?
Iarley - Foi um período de bola mesmo. De viver o dia-a-dia do profissional, de jogar 90 minutos. Porque até então, eu não tinha feito isso. E eu vi que eu dava para a coisa. Fui um dos vice-artilheiros do campeonato, novinho. Naquela época, eu lembro que eram três turnos e o Quixadá se classificou nos três. O bom de tudo isso é que eu tinha familiares na cidade de Quixadá, mas eu preferi morar dentro da concentração. Não me empolgava com festa, não me empolgava com nada. Meu namoro era com a bola.
OP - Quando o seu passe foi comprado pelos empresários, foi o período que você foi para a Europa?
Iarley - No final de 1995, eu viajei para a Espanha. Fui para Valência, onde os meus empresários moravam. Eu morei na casa de um deles. Aí, ele começou a conseguir amistosos. Conseguiram montar um do Villareal contra o Barcelona B. E Levante contra o Villareal. No amistoso contra o Barcelona, tinha um olheiro do Real Madrid. Fui carregado de campo pelos companheiros, porque acabei com o jogo. Já estava tudo certo para eu assinar com o Villareal. Mas o olheiro chegou e disse: “Olha, está aqui a passagem dele. Amanhã mesmo ele se apresenta”. E com três dias, já estava assinando contrato.
OP - O tempo que você passou lá na Europa, você avalia como? Sua carreira poderia ter deslanchado na Europa?
Iarley - Os dois anos que eu passei no Real, treinando com o Fábio Capello (técnico europeu), no mesmo vestiário de Roberto Carlos (ex-lateral da Seleção), do Sucker (ex-atacante croata), do Fernando Redondo (ex-volante argentino), foi o que faltava na carreira. Foi a preparação final. Mas na carreira do atleta, o que acontece, às vezes, não depende só dele. O Real Madrid até queria ficar comigo, ficar com 50% do passe. Só que o valor era muito baixo. Tinham outros clubes interessados. Fui para um time pequeno. Até que se confirmasse essa dita venda. E dentro da segunda divisão (espanhola), eu tinha um nome muito forte. Eu pensava que os meus empresários eram do futebol, mas estavam começando nesse ramo. É tanto que eu fui a primeira aquisição deles. Faltou essa experiência na condução da minha carreira. Fiquei chateado porque o Real Madrid queria me contratar. E como eu não vinha de uma família rica, chegou o momento em que eu peguei o dinheiro que eu tinha guardado, retornei e decidi reiniciar aqui no Brasil.
OP - Não teve nenhum problema com documentação?
Iarley - Eu tive o problema da documentação, que esses empresários, por falta de experiência, não fizeram direito. Mas um ano antes, eu já decidido que iria retornar. Eles alegavam que, se ajeitasse essa documentação, para eu ter o passaporte de estrangeiro, estaria tudo resolvido. Mas não adiantou. Era artilheiro, fazia a minha parte.
OP - Em 2000, você veio para Porangabuçu. E você, que se diz torcedor do Ceará, como foi colocar o pé nesse gramado?
Iarley - Logo de cara, não pensava em jogar no Ceará. Tinha alguns times fora do Estado que estavam interessados em mim. Fui manter a forma no Uniclinic. E o Clóvis Dias, que estava no Ferroviário na minha época, administrava o Uniclinic. Ele me pediu para jogar o restante do campeonato. Fui destaque do campeonato. E veio a proposta do Ceará. Eu tinha aquilo dentro de mim: “Poxa, eu ainda não joguei no Ceará”. Eu tinha uma vontade de jogar lá, um sonho que eu acalentava.
OP - Você também teve uma boa trajetória no Paysandu.
Iarley - Eu fui para lá porque o time ia jogar a Libertadores. Eu vi que era uma vitrine muito boa. No primeiro treino, os torcedores até me xingaram. Reclamaram que eu era jogador de segunda divisão. O time estava na Primeira (Divisão do Campeonato Brasileiro). Discuti com o presidente. Eu cheguei e exigi uma luva (dinheiro adiantado). Ele disse que não tinha luva e queria me pagar metade do que tinha pedido de salário. Ele disse: “Você veio para disputar posição com o Vélber”. Falei: “Rapaz, eu já ouvi falar no Vélber, mas eu não tô vindo para ser reserva. Pode arrumar um outro lugar para ele”. E fiquei na reserva para ele no primeiro coletivo da pré-temporada. No segundo tempo do coletivo, o Dario Pereyra (técnico, à época, do Paysandu) já me chamou, tirou o colete do Vélber e me deu.
OP - Você fez o gol do Paysandu lá em La Bombonera, na Argentina. Esse gol lhe rendeu o contrato com o Boca Juniors?
Iarley - O gol foi o passaporte. Muitos jogadores não têm o que eu tenho. Eu acho que existem jogos e jogos. O cara tem que jogar 100% em todos os jogos, mas existe o jogo ideal, que o cara não pode falhar. Tem que estar mais concentrado, muito mais preparado. Porque pode ser aquele jogo que vai dar um status melhor na vida dele. E eu estava esperando esse jogo desde então. Era ali que eu podia ir para o mundo do futebol mesmo. Eu tive a graça de fazer gol e de o Paysandu fazer história.
OP - Você conheceu Maradona, depois de um jogo do Boca Juniors, no vestiário...
Iarley - A camisa era dele. Eu estava só usando (risos). Quando eu aceitei ir para lá, já fui nervoso. Será que ele vai para os treinos? Só que esse período era o mais crítico da saúde dele. Mas no jogo da Libertadores, ele estava no camarote dele e eu joguei muito bem. Ele estava com o sobrinho, foi ao vestiário e me pediu a camisa. Ele chegou e disse: “Poderia dar a camisa ao menino?. Eu fui, dei. E disse: “Está só emprestada”.
OP - Iarley, tem aquele famoso ditado de que o céu é o limite. O seu céu foi ser campeão mundial?
Iarley - Foi. O Mundial se iguala à Copa do Mundo para os clubes. Para quem não tem acesso à Seleção, o Mundial de Clubes é o auge da carreira. Eu fui considerado o melhor em campo pelos meus colegas. Foi gratificante para mim. Eu fui importante para conquista de um Mundial.
OP - Qual o seu melhor momento como jogador até hoje?
Iarley - Eu tive grandes momentos. No Paysandu, aqui no Ceará. Eu acho que o jogador tem que ser regular em todos os clubes pelos quais passar. No Inter-RS, eu fui o terceiro atacante do Brasil. No Goiás, também.
OP - Depois disso tudo, você foi parar no Parque São Jorge. Para substituir o Ronaldo, na fase mais difícil dele. O Ronaldo, para você, foi um fenômeno mesmo?
Iarley - Ele é um fenômeno dentro e fora dos campos. Tudo que falavam dele em campo, ele é o dobro como pessoa. Ele me tratou bem, me deu muita moral. Nunca foi indiferente. Ele podia está com o problema que fosse, tratava todos bem. Sou um felizardo por ter convivido com um cara com tanta história.
OP - Vocês sentiam os problemas que ele teve com as contusões?
Iarley - Tanto que refletiu em campo. A gente queria que ele jogasse. Mas, infelizmente, não deu certo. A gente tentou de todos os modos para o time render. O joelho não deixava ele treinar bem.
OP - Na sua vida de jogador, você se arrepende de algo?
Iarley - Não. De nada. Todas as decisões que eu tomei foram para o bem do futebol e do Iarley.
OP - O que o Iarley pensa em fazer após encerrar a carreira? E uma questão a mais, que eu acredito que o torcedor alvinegro está doido para saber: encerra a carreira no Ceará?
Iarley - Ainda não sei. Mas quem sabe? Ainda estou bem jogando. Em condições de jogar. Então, não posso traçar um dia ou um ano, porque quando estiver se aproximando, vou estar relaxando e eu não acho muito legal. Para encerrar a carreira, tem que ser quando eu não estiver rendendo mais, o meu corpo não estiver aguentando. E quando eu terminar a carreira, é muito difícil eu não continuar no meio. Tudo o que eu conquistei, que aprendi, que eu convivi, foi no futebol.
OP - Quem é o Iarley fora de campo?
Iarley - Completamente diferente dos gramados. Lá, eu sou um pai disciplinador, mais chato. Sou uma pessoa mais séria. Aqui dentro, sou mais brincalhão, levo desaforo para casa. Fora de campo, já sou pavio curto. Porque quando você tem dois meninos para criar, não pode afrouxar, não pode demonstrar fraqueza, nem moleza.
OP - Você é um homem religioso?
Iarley - Sou católico. E sempre digo que a religião é importante. Ela pode alienar? Pode. Mas depende de como você conduz. Acho importante acreditar em algo maior. Vai te dar mais calma, mais confiança e te tornar um pessoa melhor.
OP - É uma pessoa feliz?
Iarley - Bastante feliz.
robertoleite@opovo.com.br
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